segunda-feira, 25 de março de 2013

A VOZ DO CORPO OU A LÍRICA DO DESESPERO


Um pouco a história de uma mulher, nascida em África, de família branca, inquieta desde muito jovem, banhada pela força da baía que tocava a sua cidadezinha mas sobretudo votada a um desassossego que a ligava às artes, pintura, desenho, embora as suas cartas para as primeiras pessoas de quem se aproximou revelassem um devir de assombro e lírica. Assim procurou, em casa de família, estudar em Portugal, na província, tutelada pelos avós e acompanhada do irmão mais velho. Dois anos mais tarde volta a África, com o coração já partido, escolando como podia e procurando a libertação do corpo e do imaginário. Fugindo da norma, casando e sofrendo as primeiras grandes vicissitudes, foi recolhida pelos pais, foi  amada por eles, e a independência da nação, que também era sua, rasgou-lhe o horizonte de várias utopias, entre militares, cursos, um novo casamento, os filhos trasladados entre a sua bela casa e a casa dos avós, uma bicicleta, um lugar institucional, um atelier onde se isolava e recebia amigos mais ou menos imbecis e o sonho da dança e uma viagem à RDA onde verificou ter um mal de coluna e se apaixonou por um maestro de leste, num palácio que Brontë acharia bom para o seu romantismo. Ela também. Mas os ofícios do Governo eram claros quanto ao corte da bolsa e tudo se desmoronou em novos estudos em Lisboa, trocando os abraços e os abraçados, perdendo quase tudo, vivem uma profunda indigência, com álcool e decadência, longe de todos, recebendo uma ou outra amiga e o cão doente que logo a amou e viu as asas dos corvos, a casa despedaçada, o chá e alguma fatia de bolo, em todo o caso lúcida como nunca, assente num corpo alargado que tapou quase por completo a sua antiga beleza. Mas quando morre diz que tem a boca cheia de palavras e começa então a contar a verdade sobre a sua verdadeira vida.

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